O propósito artístico do humano robótico

Vivemos tempos onde cada vez mais se desconfia de produções artísticas e literárias, suspeitando-se que sejam fruto de IAs. Noto como tal desconfiança se tornou tamanha ao ponto de uma “santa inquisição” vasculhar cada pixel ou caractere em busca de indícios de “feitiçaria digital” usando… feitiçaria digital (não ironicamente, “detectores de IA” são IAs).

Não me leve a mal: IAs têm sim vários pontos negativos, mas em muitos casos, fala-se mais de pessoas pêgas usando IA do que de pessoas que derramaram parte vital de si para expressar-se, com pouca ou nenhuma promoção do conteúdo legitimamente humano.

E um dos efeitos disso é o desestímulo à criação artística. Quando meu desenho ou texto são indistinguíveis dos ruídos do cérebro eletrônico, sobretudo pelo fato de que conteúdos feitos por neurodivergentes (que sou) partilham traços típicos das IAs, me pergunto: por quê?

Por que desenhar ou escrever? Por que tentar me expressar quando, diante de minha expressão, humanos desconfiarão que não há humano ali?

Pra piorar a situação, já usei tais IAs para gerar imagens (hoje não dependo mais delas para visualizar o transcendental), e sou íntimo da língua das máquinas: o que soa ruído, pra mim, são dialetos de zeros e uns, de Baudot a ASCII e Unicode, instruções ISA MOVendo bits entre registradores e segmentos da memória, Morse e os muitos modos DMR e SSTV…

“Percebo” o organismo da máquina até na eletrônica: ouço o quase ultrassônico coil whine, inaudível a muitos, um fino canto de uma screech owl como se fossem batimentos cardíacos aos ouvidos de umx enfermeirx que percebe até os intervalos QT. Percebo o circuito na sutil oscilação do brilho do LED. Talvez não seja humano e pessoas anti-IA tenham razão em recusar meu clique na caixa do CAPTCHA.

Há bastante tempo tenho hábito de lidar com textos longos e profundamente carregados, seja de simbolismo científico e/ou místico.

E, de uns anos pra cá, passei também a desenhar. Cheguei ao ponto de comprar um app para desenho, Sketchbook.

Não me chamo artista, sequer ganho com isso nem pretendo ganhar, faço por um impulso obsessivo, pessoal e catártico. E minha ND fala alto, então foquei em detalhes como iluminação, pespectiva, texturas, cores… E anatomia: um dos motivos pelos quais IAs são imprecisas é porque não têm um corpo para se embasar enquanto calculam a imagem. Tenho um, ectomorfo e quase andrógino, então aprendi a observá-lo (principalmente ossos como clavícula) enquanto desenho. Passei do que eram rabiscos de jardim de infância a rabiscos “hiperrealistas”, como se saídos de um Blender, mas são rabiscos no touch de um smartphone.

Nesses tempos, onde IAs “assombram” a Web, existe razão em publicar o que se desenha e escreve? Quando um conteúdo é acusado de ter origem generativa, de quem é o ônus da prova? Como, e até onde, alguém consegue provar que foi elx mesmx que desenhou/escreveu, se até a prova já pode ser gerada?

@batepapo@lemmy.eco.br

  • Daemon Silverstein@calckey.worldOP
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    1
    ·
    2 days ago

    @guilhermegnzaga@lemmy.eco.br

    Uma música/poesia/peça de arte deve ser apreciada pelo que ela é e não por quem a fez

    Concordo plenamente!

    Só de saber que uma massa de usuários que gostariam de um ambiente minimamente limpo dos ruidos do cérebro digital que você escreveu me estimulou demais

    Também, e foi uma das coisas que tanto trouxeram-me pro fediverso quanto levaram-me ao Geminispace. Porém, é tenso quando, por exemplo, meu tipo de expressão, que não vê fronteiras entre as diferentes áreas do conhecimento humano (falo de Lúcifer no mesmo texto onde falo de Assembly e do surrealismo de René Magritte), é facilmente confundido por outrem como sendo ruídos do cérebro digital: fica parecendo que minha expressão é um copia-e-cola de um ChatGPT quando, quem me conhece fora da tela, sabe quen esse sou eu mesmo, um sujeito ecêntrico sobrecarregado de informações.

    E como já fui acusado de “conversar usando ChatGPT” (literalmente ouvi isso de uma pessoa, sob a indireta ipsis literis “não gosto quando as pessoas usam ChatGPT pra falar comigo”), atrelado ao fato de que sou de fato usuário de IAs (embora não pra esse propósito do qual fui acusado, mas provar é uma tarefa que só é possível quando a conversa está ocorrendo presencialmente), e também ao fato de que tenho a tal da “Síndrome do Impostor” onde eu facilmente duvido de mim mesmo, acabo por internalizar a acusação.

    É triste que nossos trabalhos não alcancem massas como as redes das big techs

    Além do alcance, eu diria que há também o fator da compreensão simbólica, do entendimento.

    Por exemplo, a famosa “mensagem de Arecibo” já saiu do sistema solar e alcançou o espaço sideral, talvez tenha sido recebida por alguma forma de estrutura auto-organizante (ser vivo) extraterrestre, mas ainda que tenha alcançado-lhes, será que foi compreendida?

    Nós, seres vivos, vivemos uma experiência inexoravelmente solipsística: entendemos o que nós mesmxs queremos dizer com uma expressão/vocalização, mas o entendimento do que outro ser vivo (não apenas humanos) está expressando depende desse entendimento interno, esse dicionário cognitivo interno que cada um de nós formou com base na própria percepção. E esse dicionário raramente consegue ressonar com dicionários de outros seres vivos: meu “vermelho” definitivamente não é o mesmo “vermelho” de outrem, então se falo “vermelho” querendo dizer tudo aquilo que internamente sei e sinto com o “vermelho”, até pode ser que houve alcance, mas definitivamente não consegui comunicar o “vermelho” que senti de expressar.

    E isso é solitário, mesmo se, e quando, potencialmente milhares de pessoas visualizaram aquilo. Biilhões de pessoas ouvem os cantos dos passarinhos, ou o choro dos bebês logo que saem do útero, e acham isso lindo, mas será que os passarinhos ou os bebês não estariam, em suas respectivas expressões, lamentando os próprios sofrimentos existenciais, ou tentando avisar-nos sobre algo cósmico, apenas para serem confundidos com “lindos sons”?